Poster Clínica dos Gatos no Congresso Hospital Veterinário Montenegro
EVOLUÇÃO CLÍNICA DE GATO MAIN COON COM FRACTURA BILATERAL ESPONTÂNEA DA EPIFISE PROXIMAL DO FÉMUR – DO DIAGNÓSTICO À RECUPERAÇÃO CLÍNICA
CASO CLÍNICO
Gato com 2 anos de idade, raça Main Coon, castrado, apresentou-se à consulta com história de fraqueza dos posteriores, relutância a andar e saltar e anorexia parcial há 4 meses. Os tutores não têm a certeza de um episódio de trauma.
Ao exame físico apresentava uma condição corporal 3/9, com atrofia muscular generalizada dos 4 membros e claudicação marcada nos membros posteriores. Não foram detectadas alterações significativas nos membros posteriores na avaliação ortopédica, para além de alguma relutância e dor aos diversos movimentos e manipulação. O exame neurológico estava normal. À auscultação foi detectado um sopro grau IV/VI, bilateral, com frequência cardíaca normal e sem arritmias. Foi realizado um hemograma, painel bioquímico, ecografia abdominal e uma ecocardiografia, sendo que todos os resultados foram normais e sem alterações patológicas.
Foi efectuada uma Tomografia Axial Computadorizada (TAC), sendo de-tectada uma fractura da epífise proximal da cabeça do fémur, bilateral, com um deslocamento da metáfise em relação à epifíse proximal do fémur e com sinais de reabsorção óssea do colo femoral (Figura 1,2,3,4).
Fig.1
Fig. 2
Fig.3
Fig.4
O animal foi submetido a uma ressecção da cabeça e colo do fémur nos dois membros, com um intervalo de um mês e meio entre cada membro.
Medicamente o pós-cirúrgico foi controlado com robenacoxib (1 mg/kg PO SID) durante 5 dias e com buprenorfina (0.02 mg/kg SL BID) durante 3 dias consecutivos.
Os produtos das ostectomias foram remetidos para análise histopatológica, após um processo de descalcificação.
Figura 5 – Cortes histológicos dos produtos de ostectomias. Figuras A , B e C (50X; H&E); Figuras C, D e F (200x; H&E)
Histologicamente a placa epifisária apresenta-se alterada (Fig. A, B e C) demonstrando um desarranjo dos condrócitos (Fig. C, D e F) que se apresentam irregularmente distribuídos e rodeados por um estroma conjuntivo abundante (→) com focos de necrose (*).
EVOLUÇÃO CLÍNICA
Optou-se por realizar a ressecção da cabeça e colo do femur do membro direito baseado na informação clínica dada pelo dono de uma maior claudicação deste membro, e avaliação ortopédica do mesmo.
Após a primeira intervenção cirúrgica, o gato demonstrou uma melhoria clínica ao retomar um apetite mais normal ao fim de 3 dias. Foi tido em conta a dieta do gato, de modo a evitar um aumento súbito de peso e evitar um aumento de carga sobre o membro ainda não intervencionado.A partir do dia 6, volta a posicionar o membro no chão. Ao dia 13, voltou a saltar e a tentar retomar comportamentos de corrida, utilizando maioritariamente o membro intervencionado.
Fig.6
A nível radiográfico são observadas alterações compatíveis com uma separação e eventual deslocamento da metáfise em relação à epífise da cabeça do fémur. Existem regiões de radiolucência no colo femoral associadas a focos de osteólise e reabsorção óssea no membro posterior esquerdo [(→)Fig. 6].
Após 6 semanas foi intervencionado o membro posterior esquerdo
Fig.7
Após a segunda intervenção, logo ao 3º dia tentou saltar e voltar aos comportamentos normais de locomoção, antes de ter os sinais clínicos. Os tutores mencionam uma melhoria no bem estardo gato ao ver sinais tais como grooming, ronronar, mais apetite e um maior tempo dispendido com os tu-tores.
Destaca-se a melhoria/recuperação imediata da atividade locomotora (salto, corrida, levantar sem dificuldade) após a segunda cirurgia.
DISCUSSAO
As fraturas espontâneas da epífise proximal da cabeça do fémur, ou em inglês, Slipped capital Femoral Ephysis (SCFE), normalmente não são associadas a traumas. Encontram-se pouco descritas em gatos, no entanto tem uma apresentação semelhante ao que já se encontra descrito em humanos.1,2 Diversas etiologias foram sugeridas desde necrose avascular, osteomielite, alterações endócrinas ou genéticas.1–4
A etiopatogenia da SCFE ainda não se encontra totalmente esclarecida. Trata-se de uma alteração nas placas epifisárias, devido a uma displasia primária ou a um encerramento tardio das mesmas.5-7
Estas fraturas foram inicialmente descritas como uma osteopatia da metáfise do cólo do fémur, derivada de uma necrose asséptica, semelhante à doença de Legg-Calve-Perthes descrita em cães. 5 No entanto, as alterações radiográficas e histológicas apontam para alterações de reabsorção e remodelação óssea, secundárias a uma fractura de Salter Harris Tipo I, do que propriamente a um processo de isquémia óssea. 5
Nos gatos a epífise proximal da cabeça do fémur é diretamente irrigada por um vaso que vem do ligamento redondo, motivo pelo qual a necrose asséptica da cabeça do fémur não se encontra nesta espécie. 5, 6, 7
Nos animais de companhia a irrigação da cabeça do fémur depende de um plexo arterial formado sobre a superficie articular da cabeça do fémur, envolvendo a mesma. 6, 7 Este plexo é formado pelas arterias femorais circumflexas lateral e medial, pela arterial gluteal caudal e pela arteria ileolombar.7 Nos gatos a epifise proximal da cabeça do femur é directamente irrigada por um vaso que vem do ligamento redondo, e uma combinação de vasos intraosseos provenientes da arterial nutricional/intraossea directamente à metafise, motivo pelo qual a necrose asséptica da cabeça do fémur não se encontra descrita em gatos. 5, 6, 7
O encerramento das placas epifisárias depende de diversos fatores como a espécie, o local anatómico, dieta e atividade hormonal, destacando a hormona de crescimento, a insulina, hormonas da tiroide e hormonas sexuais. 2,4,8
Os tempos normais de encerramento das placas de crescimento da cabeça do fémur, do fémur distal e da tibia proximal são de 30-44 semanas, 54-76 semanas e 50-76 semanas, respectivamente. 2,6
Diversos estudos demonstraram que a castração, numa idade jovem e antes da puberdade, atrasa o encerramento das placas. 2,4,7,8,9
Histologicamente, a placa de crescimento demonstra uma desorganização dos condrócitos com envolvimento de abundante estroma conjuntivo, em vez da sua disposição linear. Também apresenta uma separação das placas com o dobro do tamanho normal e com eventuais focos de necrose a nível da metáfise próximal do fémur. 1–3, 8, 9
Alguns autores mencionam esta condição como uma displasia primária das placas de crescimento, que pode dar origem a uma fractura da epífise proximal do fémur e que a remodelação óssea será secundá-ria a esta. 6,8 Outros autores sugerem que será uma osteopatia das metáfises por si, ou que esta ocorra como um processo crónico da SCFE. 7, 9
Algus animais com SCFE apresenta abertura das restantes placas de crescimento. 1,2, 6,9,10 Mais estudos serão precisos para determinar se a SCFE é uma consequência de um disturbio generalizado nas placas de crescimento ou se está apenas relacionada com a epifise proximal do fémur.3
Os animais que se apresentam à consulta são jovens (média entre 16 e 22 meses) que exibem diversas placas de crescimento abertas. A apresentação mais comum é em animais castrados, com excesso de peso e sem história prévia de trauma.1–3, 7, 8
Esta condição já foi descrita em diversas raças, sendo que há uma maior representação no Doméstico de Pêlo Curto, Siamês e Main Coon. 3, 8
Na maioria das descrições de SCFE, o diagnóstico é feito a partir da história clínica, exame ortopédico, alterações radiográficas e histopatologia. 1–4,6,7,8
Neste caso optamos por efectuar uma TAC para permitir um diagnóstico com maior sensibilidade, face à cronicidade e gravidade do quadro clínico. É o primeiro caso descrito em que o diagnóstico foi feito primeiramente através de uma TAC.
Radiograficamente são observadas alterações compatíveis com uma separação e deslocamento da epífise em relação à metáfise do colo do fémur, semelhante a uma fractura Salter-Harris Tipo I, com regiões de radiolucência no colo da cabeça do fémur associadas a focos de osteólise e reabsorção óssea. Tipicamente tem uma apresentação bilateral. 2,4–8,11,12
A projecção de eleição consiste num posicionamento ventro-dorsal e numa colocação dos membros posteriores numa forma de “sapo”. Deste modo é possível observar a região de fractura e o “deslizamento” da epifise da cabeça do fémur sobre a metáfise proximal, que na tipica projecção ventro-dorsal, devido ao esticar dos membros posteriores, pode reduzir a fractura omitindo a mesma (principalmente nos casos mais precoces de SCFE). 2,6,12
O tratamento recomendado é cirúrgico e consiste numa ressecção da cabeça e colo do fémur. 3,5,13,10
A SCFE deve ser considerada como diagnóstico diferencial importante em machos jovens, castrados, Main Coon, com fraqueza/claudicação dos posteriores, apesar da sua etiologia ainda indeterminada.3,4
Mais estudos terão de ser realizados a fim de verificar se temos poucos casos descritos devido a uma baixa incidência da condição ou a um sub-diagnóstico. Será também importante avaliar que factores contribuem para esta condição, tais como fatores genéticos, e avaliar a idade ideal para a castração .
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